terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Iniciativa política em prol dos direitos dos(as) transexuais no Brasil.



Jean Wyllys – Deputado Federal PSOL-RJ 
Jean Wyllys e João Nery, considerado o primeiro transexual homem operado no Brasil e autor do livro "Viagem Solitária - Memórias de um Transexual 30 anos depois"
As palavras visibilidade e invisibilidade são bastante significativas para nós, LGBTs. Pertencer a esta “sopa de letras” que representa a comunidade sexo-diversa (ou a comunidade dos “invertidos”) é transitar, ao longo da vida, entre a invisibilidade e a visibilidade. Se para nós, lésbicas e gays, sermos visíveis implica em nos assumirmos publicamente, ou seja, passarmos da vergonha ao orgulho de nossa orientação sexual (nossa forma de amar; de desejar sexualmente alguém do mesmo gênero); se implica em sairmos do armário que torna invisível – às vezes aos nossos próprios olhos – nosso desejo, para as pessoas transexuais, travestis e transgêneros, a visibilidade é compulsória a certa altura de sua vida; isso porque, ao contrário da orientação sexual, que pode ser ocultada pela mentira, omissão ou pelo armário, identidade de gênero é experimentada, pelas pessoas trans, como um estigma que não se pode ocultar, como a cor da pele para os negros e negras.
Transexuais e travestis não têm como se esconder em armários a partir de certa idade (já lésbicas e gays podem morrer neles, nos armários, se não encontrarem motivos para sair dos mesmos; se não tiverem coragem de brigar por um lugar digno no mundo sendo quem são de verdade). Por isso, na maioria dos casos, mulheres e homens trans são expulsos de casa, da escola, da família, do bairro, até da cidade. A visibilidade é obrigatória para aquele cuja identidade sexual está inscrita no corpo como um estigma que não se pode ocultar sob qualquer disfarce. E o preconceito e a violência que sofrem é muito maior.
Porém, de certa forma, eles e elas também são invisíveis. Boa parte da sociedade faz de conta que não existem, ou que são pessoas destinadas a ficar à margem de tudo. Travestis e transexuais são invisíveis nas festas de graduação, porque muitos e muitas abandonam a escola pelo bullying; são invisíveis nas universidades, já que pouquíssimos/as conseguem ingressar; são invisíveis na grande maioria dos empregos (e a sociedade parece acreditar que, no caso das travestis, a prostituição seja o emprego “natural” delas, como se isso não fosse produto da discriminação que lhes impede o acesso a outro tipo de profissões). Talvez os mais invisíveis sejam os transhomens, porque poucas pessoas sabem que existem, também, transexuais masculinos, cuja identidade narra de maneira tão bela João Nery, no livro autobiográfico Viagem solitária.
Porém, de todas as invisibilidades a que eles e elas parecem condenados, a invisibilidade legal parece ser o ponto de partida. Porque se você é invisível até na lei, como reclamar em todos os outros casos?
O imbróglio jurídico sobre as identidades “legal” e “social” das pessoas travestis, transexuais e transgêneros provoca situações absurdas que mostram o tamanho do furo ainda existente em nossa legislação. Graças a ele, há pessoas que vivem sua vida real com um nome — aquele que usam na interação social cotidiana — mas que carregam consigo um instrumento de identificação legal, uma carteira de identidade, que diz outro nome. E esse nome aparece também na carteira de motorista, na conta de luz, no diploma da escola ou da universidade, na lista de eleitores, no contrato de aluguel, no cartão de crédito, no prontuário médico. Um nome que evidentemente é de outro, daquele ser imaginário que habita nos papeis, mas que ninguém conhece no mundo real.
Quer dizer, há pessoas que não existem nos registros públicos e em alguns documentos e há outras pessoas que só existem nos registros públicos e em alguns documentos. E umas e outras batem de frente no dia-a-dia em diversas situações que criam constrangimento, problemas, negação de direitos fundamentais e uma constante e desnecessária humilhação.
O que falta, então, é uma nova lei que dê uma solução definitiva à confusão reinante. É o que muitos países têm feito nos últimos anos. É por isso que, no dia de hoje, protocolei na Câmara dos Deputados um projeto de lei de identidade de gênero que recolhe a experiência da Argentina, cuja lei é a mais avançada do mundo. Foi feito em parceria com os ativistas e as deputadas que impulsionaram e conseguiram a aprovação dessa lei.
Existe outro projeto, da deputada Érika Kokay (PT), que é uma grande parceira e amiga (e é coautora, junto comigo, da PEC do casamento civil igualitário). No entanto, na minha opinião, o projeto apresentado por ela ainda não contempla todas as demandas necessárias à plena dignidade humana das pessoas trans. Ele ainda exige demanda judicial para mudança de nome e não se posiciona em relação aos laudos psicológicos exigidos para a mudança de sexo e de nome. Por isso, depois de consultar diversas organizações e ativistas, e seguindo as recomendações, entre outras, da Associação Brasileira de Homens Trans, decidi protocolar o texto que tinha elaborado há vários meses, antes de saber que a Érika apresentaria outro, e que até agora guardei na expectativa de ser relator do projeto dela e, assim, poder propor as mudanças necessárias sem que precisasse apresentar outro projeto. Essa opção, hoje, parece improvável.
A lei que proponho garante o direito de toda pessoa ao reconhecimento de sua identidade de gênero. As pessoas travestis, transexuais e transgêneros poderão solicitar, através de um trâmite simples no cartório, a retificação dos seus dados registrais e a emissão de uma nova carteira de identidade e de uma nova certidão de nascimento em que constem seu nome e seu gênero — os da vida real. Tudo isso será feito sem necessidade de intervenção do judiciário, sem advogados nem gestores, sem demoras. Eles e elas já esperaram muito!
Em consonância com a legislação comparada, a lei estabelece os critérios para assegurar a continuidade jurídica da pessoa, através do número da identidade e do CPF. Todos os órgãos competentes deverão atualizar os dados, garantindo o sigilo do trâmite. As pessoas que mudarem de sexo e prenome continuarão tendo os mesmos direitos e obrigações: se elas têm uma dívida, deverão pagá-la; se têm um emprego, continuarão empregadas; se receberam uma condenação, deverão cumpri-la; se têm filhos, continuarão sendo pais ou mães; se assinaram um contrato, deverão honrá-lo. Os dados eleitorais, fiscais, de antecedentes criminais, etc., após a mudança, serão atualizados.
A lei também regulamenta as intervenções cirúrgicas e os tratamentos hormonais que se realizam como parte do processo de transexualização, garantindo a livre determinação das pessoas sobre seus corpos. Isso já é uma realidade no Brasil: os tratamentos garantidos na presente lei já se realizam através do Sistema Único de Saúde (SUS), mas nosso projeto transforma esse direito conquistado em lei e estabelece uma série de critérios fundamentais para seu exercício, entre eles: a despatologização, isto é o fim dos diagnósticos de “disforia de gênero”, proibidos em diversos países por constituir formas de estigmatização anticientífica das identidades trans; a independência entre o reconhecimento da identidade de gênero e as intervenções no corpo, isto é, o direito à identidade de gênero das travestis; a independência entre os tratamentos hormonais e as cirurgias; a gratuidade no sistema público (SUS) e a cobertura nos planos de saúde particulares; e a não-judicialização dos procedimentos.
Levando em consideração os princípios da proteção integral e do interesse superior da criança, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, meu projeto explicita que toda pessoa que solicitar a retificação registral de sexo e a mudança do prenome e da imagem deverá ser maior de idade. No caso de pessoas menores de 18 anos, a solicitação deverá ser efetuada através de seus representantes legais e com a expressa conformidade de vontade da criança ou adolescente. Quando, por qualquer razão, seja negado ou não seja possível obter o consentimento de algum/a dos/as representante/s da criança e do adolescente, ele poderá recorrer a assistência da Defensoria Pública para autorização judicial, levando em consideração os princípios de proteção integral e interesse superior da criança.
Esse projeto de lei de identidade de gênero que acabo de protocolar é mais uma iniciativa do meu mandato em defesa dos direitos da população trans do Brasil.
O meu projeto de lei de regulamentação da prostituição (a “lei Gabriela Leite”) inclui às travestis e transexuais que se dedicam ao trabalho sexual (e também aos garotos de programa, porque embora algumas feministas queiram se apropriar do debate sobre os direitos dos/as trabalhadores/as sexuais, trata-se de um trabalho que não tem gênero exclusivo). Essa regulamentação que estou propondo, que garantirá os direitos dos/as trabalhadores/as autônomos/as que se dedicam à prostituição por decisão própria e, ao mesmo tempo, servirá para combater a exploração sexual, deveria ser acompanhada de políticas públicas que garantam que esse ofício não seja a única alternativa para ninguém. Corresponde aos governos (federal, estaduais e municipais) desenvolver políticas econômicas, sociais e de direitos humanos que garantam o acesso da população trans à educação e ao emprego, para que a prostituição seja apenas mais uma alternativa, e não a única.
Apresentei um projeto de lei que dá preferência, nas licitações e contratos dos estados federal, estaduais e municipais, às empresas que tenham programas pró-equidade de gênero, identidade de gênero, orientação sexual e/ou raça/etnia, bem como projetos de inserção de idosos e idosas no mercado de trabalho. É mais uma maneira de incentivar a inclusão no mercado de trabalho dos grupos sociais discriminados, que estão atualmente em desvantagem.
Também enviei ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, dentro do meu papel de fiscalizar do Poder Executivo, Requerimento de Informação para averiguar o cumprimento da Portaria nº 233 de 2010 que obriga, nos órgãos da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional, o uso do nome social adotado por travestis e transexuais (TTs). Com isso, o MPOG terá de fazer um levantamento da atual situação no que se refere às solicitações de requerimentos de nome social que já recebeu.
Mas, como já foi dito, além de leis, faltam políticas públicas, que o movimento LGBT, em sua diversidade e dispersão, deveria cobrar daqueles que estão no poder Executivo.
Hoje e todos os dias.

FONTE: http://jeanwyllys.com.br/wp/a-invisibilidade-trans

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